sexta-feira, 23 de julho de 2010

As múltiplas faces do uno

      Adoro me aventurar por novas literaturas. Expande os horizontes das minhas percepções. Um amigo indicou O Lobo da Estepe de Hermann Hesse como sendo um livro indispensável para um bom leitor. Normalmente, eu pesquisaria um pouco sobre o escritor e sobre o livro antes de me aventurar na leitura, mas, quando se busca mudanças ou novos pontos de vista, é preciso se expor às contigências. É um daqueles momentos onde  não penso... tampo a respiração e me atiro na água. Depois, descobro se ela está fria demais ou se está agradável. Então, foi o que fiz! O fruto dessa aventura é tema deste post.


       No post anterior, destaquei uma passagem do livro Assim Falou Zaratustra de Nietzsche, onde o filósofo classifica o homem como "uma corda estendida entre o animal e o Super-homem". Essa é uma forma de ver um indivíduo. Não como um único ser, indivisível, mas como um ser dual. Uma criatura que oscila entre os instintos animais (que para mim são os mais elevados!) e os espirituais (do Super-homem). Alguns pensadores discordam desse filósofo em parte. O homem realmente não é uno, nem duo, mas múltiplo.

Ayahuasca (Banisteriopsis cooci)

      Esse pensamento estava perdido na minha memória e foi resultado de uma das minhas andanças literárias. Em um romance, A Viagem Interior de Francisco Boström, um guru ensina a seu discípulo como elevar suas percepções para planos além do mundo material. No processo de aprendizagem, o discípulo utiliza o Lumen (uma infusão da planta Ayahuasca que possui propriedades psicotrópicas e é, comumente, usada em cerimônias religiosas, como na União do Vegetal) e outros rituais para atingir esse objetivo. Um dos ensinamentos foi a aceitação do caráter múltiplos de cada ser. O ser não é sempre constante, único e indivísivel, mas composto por vários papéis que estão constantemente sujeitos a transformações. Para atingir a plenitude do uno é preciso viver os papéis que nosso ser quer interpretar. Seja o libertino, o rude, o gentil ou o apaixonado. Pois, nosso ser é múltiplo. Um reflexo das mútiplas faces do uno. Sou um naturalista ontológico, mas gostei desse ensinamento.


      Invoco Hamelet, personagem de Shakespeare, que ao se despedir do fantasma de seu pai e deparar-se com o terror de Horácio, proclama: "Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia". A forma como percebemos o mundo, como construimos nossas representações do mundo são limitadas por nossa mente. Entender alguns desses processos podem nos guiar para uma vida mais agradável e frutífera. Aqui, uso a filosofia como ponte para esses deleites. Aceitar nosso ser como múltiplo é um dos caminhos para a felicidade.

      No livro O Lobo da Estepe, o protagonista, Harry Haller, enfrenta esse dilema. Ele se divide em apenas dois: homem e "lobo". O homem é "um mundo de pensamentos, de sensações, de cultura, de natureza domada e sublimada" e o "lobo" é "um obscuro mundo de instintos, de selvageria e crueldade, de natureza bruta e insublimada". Em muitas situações, Harry enfrenta o dilema em se saber homem ou lobo, duas personagens opostas e conflitantes, e entra em uma profunda indecisão. Essa simplcação grotesca do seu ser o torna infeliz. "Pois não há um único ser humano, nem mesmo o negro primitivo, nem mesmo os idiotas, convenientemente simples, que possa ser explicado como a soma de dois ou três elementos principais; (...) Sua vida (como a vida de cada um dos homens) não oscila simplesmente entre dois pólos, tais como o corpo e o espírito, o santo e o libertino, mas entre mil, entre inumeráveis pólos". Então, talvez um dos caminhos da felicidade seja nos reconhermos como múltiplas faces de um uno. Essa é uma idéia interessante a se considerar!


      É sempre agradável quando minhas leituras se conectam e posso construir novos pensamentos! Isso só aumenta a minha satisfação em adentrar o universo imprevisível da literatura!

2 comentários:

  1. O canto e o mar oculto pedem passagem.

    "Ninguém é alguém, um só homem imortal é todos os homens. Como Cornélio Agripa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demônio e sou mundo, o que é uma fatigante maneira de dizer que não sou."

    (BORGES, J. L. apud RABELO, F. R., 2008)

    Múltiplas faces que abrigam o vácuo do 'como um' comum.

    Sorte em jornada tua! Sorte à população de neurônios que pululam este blog!
    Que possam navegar em calmaria mesmo em meio à mais portentosa das torrentes.

    ResponderExcluir
  2. Obrigado, Fernando! Gostei da citação!

    Abraço!

    ResponderExcluir